SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 29 de julho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (95)


                                             Rangel Alves da Costa*


Deslumbrada com o que leu, deixou o livro sagrado aberto no mesmo Levítico. A mensagem havia sido tão clara que não poderia ter deixado de entendê-la, porém precisava refletir mais calmamente sobre a mesma.
O que fez em seguida foi algo completamente inesperado: pegou o pão e foi comendo pedacinho a pedacinho. Estava com uma fome danada, fome antiga, já de alguns dias. No estado que estava, bebia das lágrimas e se alimentava da certeza que não comeria nunca mais. Verdade é que não tinha fome nem sede.
Contudo, avidamente se deliciou com o pão macio encontrado, cheiroso, gostoso, parecendo ter sido feito ainda naquela manhã. Ainda com os cantos da boca esfarelados do alimento, foi em direção à moringa e derramou num copo uma água tão fresquinha que parecia de geladeira. Que água mais doce, mais saborosa, verdadeiramente reconfortante.
Somente após respirar bem fundo começou a pensar numa coisinha simples, um quase nada, mas que agora intrigava. E disse a si mesma: Mas eu não comprei pão, não saí daqui, não tinha nenhum pedaço guardado, muito menos inteiro e fresquinho como aquele estava, então o pão também foi colocado ali por quem arrumou a casa bonita e limpinha desse jeito.
E continua dialogando intimamente: Desse modo, o pão era pão e não era, tinha jeito de pão, sabor e gosto de pão, mas não era. Será então que ele tem algo a ver com aquela frase ali da Bíblia, que por sinal está até marcada de forma diferenciada?
E correu para o livro sagrado e leu novamente a frase: “A debulha do trigo prolongar-se-á até a vindima, e a vindima até a sementeira; comereis o vosso pão à saciedade, e habitareis em segurança na vossa terra”.
Leu novamente e releu, repetiu e repetiu outras vezes, e em seguida sentenciou para si mesma e dessa vez em voz alta:
Meu Senhor, que este pão que me enviaste para matar muito mais minha fome espiritual do que corporal, seja o alimento que tanto preciso para me fortalecer diante das dificuldades da vida. Forte, renovada, renascida, então serei uma mulher apta a seguir todas aquelas palavras divinas que li na Bíblia. Mas só peço, meu Senhor, que me conceda um tempo para ir refazendo a minha vida, pois de tantas pedras espalhadas pelo caminho, jogadas ao léu e ao desvão do sofrimento, não será fácil recolhê-las para a construção da fortaleza que serei e onde meu espírito forte habitará!
Em seguinte, com aspecto festivo e sorridente, correu até a frente da casa e ali, debaixo do sol ardente, abriu os braços, ergueu-os, e mais uma vez falou em voz alta bendizendo tudo aquilo que lhe vinha ao pensamento:
Bendita seja a vida e tudo que nela há, desde os seres humanos aos bichos do mato, desde a terra seca ao barreiro lamacento, desde a boca sedenta ao copo de água, desde a pobreza e o ter abundância, pois tudo na medida de Deus que não desampara ninguém e fartará todo aquele que estiver na precisão; bendita a madrugada e a manhã, o raio de sol e o tempo ensolarado, a tarde e o entardecer, a boca da noite e a noite, o anoitecer e a lua que surge, a estrela que brilha e a sombra silenciosa tomando conta de tudo, pois aí também está a feição de Deus emoldurando a vida; bendito o amor naqueles que amam, o amor que virá naqueles que precisam amar, o amor que nunca virá naqueles que se findarão na esperança, pois sabe Deus que é melhor a solidão do que sofrer a ilusão amorosa; bendita a família, o pai, a mãe e o irmão, o sangue que corre na veia, a linhagem familiar, o parentesco, uma casa que já vem desde outros e nunca deixará de ser habitada porque passando de raiz a raiz; benditas as pequenas coisas, aos nossos olhos quase nada, mas que sem elas a vida seria de menor importância, como o grilo que canta escondido, a folha seca que passa ao alto, a pedra que silenciosamente faz sua prece, a brisa e o vento que passam trazendo notícias; benditos os sentimentos que povoam cada um de nós, desde a dor à alegria, da tristeza à euforia, do encontro à saudade, pois na balança do bem e do mal é que está o equilíbrio da vida; bendito este momento, esta hora, este dia e todos os outros que virão, pois bendita é a certeza que Deus sempre reservará o melhor para nossas vidas...”.
Nunca bendisse tanto tudo como nesse momento, nunca esteve tão cheia de si e tão animada, tão desejosa de cantar, correr, brincar. E cantou, correu, brincou, até que cansou e deu vontade de voltar pra casa e tomar um banho. Mas ao se virar para o retorno avistou alguém além da janela, sentada na cadeira e olhando pra fora, para onde ela estava.
E reconheceu a pessoa: era ela mesma.
Continua...   
 

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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