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quarta-feira, 4 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 5 (O SÉTIMO SELO DE LAMPIÃO)


                                                   Rangel Alves da Costa*

Se for verdade o que andaram dizendo por aí, espalhando pelos quatro cantos, não consigo imaginar Virgulino Lampião e o Capitão João Bezerra - dois inimigos para os outros e tão amigos nos escondidos do sertão - sentados e tranquilamente jogando baralho, senão como uma cena de filme. E uma película do cineasta sueco Ingmar Bergman chamada “O Sétimo Selo”, de 1956.
O título do filme é uma referência ao livro bíblico Apocalipse, no qual consta que na mão de Deus há um livro com sete selos, e a abertura de cada um significa um terrível sofrimento para a humanidade, mas nada comparável ao desenlace do sétimo selo, que causará o fim dos tempos.
O filme trata fundamentalmente do medo, das angústias e indagações que o ser humano tem acerca da morte. Passa-se num período sombrio da Idade Média, quando um cavaleiro retorna das Cruzadas e encontra sua terra assolada pela peste negra e a morte rondando por todo lugar. Diante da situação, começa a indagar sobre a existência de Deus e o significado da vida. E não só via a morte rondando tudo como o próprio cavaleiro acaba se encontrando com a própria morte, personificada num estranho e misterioso homem. Este se apresenta, diz que é a morte e a que veio e o convida a acompanhá-lo. Seria o fim de sua vida. Sabendo que teria pouca chance diante do inusitado visitante, o guerreiro aceita, mas impondo uma condição: que a morte aceitasse jogar com ele, disputar uma partida de xadrez. Se perdesse, a acompanharia no mesmo instante. Seu objetivo é ganhar tempo e ver se encontra meios para ludibriá-la, coisa que sabe ser muito difícil, pois a mesma já havia afirmado que sempre leva a melhor no jogo com a vida. Desse modo, a disputa surge como uma pausa na morte para que a vida procure refletir sobre tudo e principalmente sobre sua fragilidade. E o resultado final não é outro. Logo o cavaleiro reconhece que ainda que se faça tudo para adiá-la, é impossível vencer a morte.
Pelo que contam – e coisa que não levo muito em consideração, ainda que saiba que no contexto da guerra cangaceira há mais coisas entre a polícia e o cangaceiro, entre a ordem e a dita desordem, do que imagina nossa matuta filosofia -, já nas proximidades de ocorrer a chacina da Gruta do Angico (a 28 de julho de 1938, quando a volante comandada pelo Capitão João Bezerra cercou e derrubou a bala onze cangaceiros, dentre eles Lampião e Maria Bonita), houve mais um dos tantos encontros secretos entre os dois capitães, o da polícia e o do cangaço, entre o perseguidor e o perseguido.

Em tais encontros amigueiros, sempre acompanhados de bebidas e amabilidades, e ocorrendo sempre nas matarias e grotões sertanejos, onde estranhos jamais sonhassem pudessem acontecer, o que se objetivava acima de tudo era trocar informações tanto acerca do bando como da polícia, deixar resolvidos os acertos pendentes, reafirmar os compromissos entre os dois chefes e cada um desejar vida longa ao outro. E como no filme, todo o diálogo se desenrolando enquanto jogavam um bom carteado. E muitas vezes com altas apostas.
Tudo isso pode ser a mais deslavada mentira; mas também pode ser a mais pura verdade. E por que não? Segundo muitos pesquisadores, é cantado e decantado que o Capitão João Bezerra era cúmplice do Capitão Lampião, e vice-versa. Toda aquela medonha e ferrenha perseguição da polícia ao bando não passava de um jogo, de uma encenação prestando contas às altas esferas de poder. E mesmo assim nem todas, pois é sabido que o próprio Lampião era protegido e visto com bons olhos por altas patentes, grandes lideranças políticas, coronéis nordestinos e governantes.
Contudo, como o Estado brasileiro não podia simplesmente ignorar uma guerra por justiça social, contra as arbitrariedades do poder e outras mazelas, e sendo travada praticamente dentro de uma região inteira, então teve de intervir, através do envio de tropas para combater os insurgentes, tidos como sanguinários bandoleiros a desafiar a ordem e a paz social. Ora, também era preciso passar uma imagem de um governo que não admitia que bandidos fizessem justiça com as próprias mãos nem que desafiassem as leis estabelecidas.
Contudo, as forças combatentes, ou forças perseguidoras, também chamadas volantes, pois distribuídas em várias frentes e com fácil poder de deslocamento, diferentemente do que ocorrera nas primeiras desastradas campanhas de Canudos, não eram formadas por pessoas alheias ou desconhecedoras da realidade nordestina. Daí o exercício da função policial, adentrando nas matas e cidades para combater os inimigos da ordem, mas também uma inegável cumplicidade com o cangaço. E aos olhos de muitos policiais um movimento que se justificativa positivamente.
Diante de tal contexto é que se pode afirmar que nem a polícia foi totalmente inimiga do cangaceiro, nem este daquele. Situações existiram onde grandes confrontos resultaram em mortes de ambos os lados. Entretanto, há de se observar que em tais ocorrências determinados cabras das volantes mostravam ter uma rixa quase que pessoal com os cangaceiros de Lampião, algo como ciúme doentio ou que haviam jurado matar em troca de dinheiro que não vinha do próprio comando. Ora, havia gente muito importante por trás disso tudo.
Segundo dizem, João Bezerra era comandante de um grupo de policiais que sempre preferia os acertos e conchavos do que propriamente a inimizade e o confronto, muito menos com o maior dos cangaceiros. Perseguia sim, entrava na mata sim, tocaiava, emboscava, providenciava as mais terríveis armadilhas, mas quando muito para matar bicho pequeno. E Bezerra prestava contas aos seus superiores dizendo que não passaria muito tempo pra liquidar todo o bando, principalmente quando arrancasse a cabeça de Lampião.

Mas no mesmo instante que enviava missivas com tais afirmações, providenciava, através de coiteiros e pessoas de sua extrema confiança, encontros às escondidos com aquele que deveria ser seu inimigo maior. E por que a volante, os seus comandados, também não estavam a par dessa grande amizade e dos acertos entre os dois? Só uma resposta: a volante deveria continuar predestinada na perseguição, no encalço do bando, mas não para matar o seu líder. Mas caberia a ele, enquanto comandante e amigo de Lampião, direcionar as ações para que isto jamais acontecesse.
E dizem que o último encontro entre os dois ocorreu no lado de cá do Rio São Francisco, bem pertinho da Gruta do Angico, onde o bando estava acoitado. Desse local no meio do mato, debaixo de árvore frondosa, para o lugar onde a volante estava bastava atravessar o rio, pois a macacada mantinha posto na povoação alagoana de Piranhas. Quer dizer, o comandante jogava animadamente com Lampião enquanto a tropa policial ansiava por encontrar notícias sobre o paradeiro do bando.
Neste aspecto é que ressurge a cena do filme “O Sétimo Selo”, em que o guerreiro aventureiro trava uma disputa com a morte. Se no filme os dois jogavam dama, no sertão o jogo era com baralho. Lampião, já cansado de tantas andanças e batalhas por todo lugar, desafiava aquele que poderia ser sua morte. Sim, naquela disputa o Capitão João Bezerra representava a morte. E a vida do bando talvez dependesse apenas do quanto tempo Lampião continuaria vencendo o inimigo. Mantinha amizade, mas sabia que não podia confiar demais, pois a morte traiçoeira ali presente.
Ninguém sabe quem ganhou ou perdeu naquele dia. Talvez ali Lampião tivesse obtido sua última vitória, pois a morte atravessou o rio na madrugada e veio descontar a derrota. E o último selo do cangaço foi finalmente rompido. 
    



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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