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segunda-feira, 2 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 3 (O CÓDIGO DE CONDUTA DOS CANGACEIROS DE LAMPIÃO)

                                 
                                          Rangel Alves da Costa*


Como é do conhecimento de muitos, Virgulino Lampião não era pessoa completamente analfabeta, um iletrado errante pelas caatingas nordestinas. Pelo contrário. Mesmo não tendo levado adiante com mais afinco seus estudos de meninice na pernambucana Vila Bela, verdade é que havia aprendido a ler e escrever o suficiente.
Muitas de suas cartas e bilhetes, missivas enviadas aos comandantes da polícia e aos coronéis sertanejos, bem como aos amigos com quem mantinha vínculo de proximidade, são por demais conhecidas. Museus e colecionadores guardam tais correspondências como verdadeiras relíquias. E certamente assim podem ser consideradas, verdadeiras preciosidades daquele que foi o maior combatente, o mais estrategista e o melhor comandante de todo o sertão nordestino.
Do mesmo modo, muitas fotografias amareladas mostram Virgulino, sozinho ou ao lado de sua Maria, folheando revistas ou lendo jornais. Numa dessas fotos lê um livro parecendo encadernado; noutra, tendo o seu cachorro de estimação entre Maria e ele, posa com uma revista na mão, até mesmo mostrando um retrato de mulher que estava apreciando; e ainda noutra, também feita por Benjamim Abraão, vê-se dois ou três cangaceiros de olhos voltados para alguns escritos.
Além desse rudimentar conhecimento da escrita e da leitura, certamente o Capitão enriquecimento o seu conhecimento com a própria vivência, no trato com os poderosos, com a experiência dos matutos, e principalmente daqueles que procurava quando precisava tomar uma decisão que fosse mais a respeito da realidade exterior do que do cotidiano cangaceiro. Neste último aspecto, era verdadeiro doutor.
Numa besta comparação, e até desnecessária, se poderia dizer que o conhecimento exterior adquirido pelo Capitão aparentava com a de um certo ex-presidente brasileiro. Rude, com pouco estudo, só possuindo exímia habilidade na estratégia de perseguição política, de maquiavelismos e de querer menosprezar os adversários a todo custo. Só que Lampião não vivia nem falando nem fazendo besteira quanto este, pois o comedimento era uma de suas características mais conhecidas.
Desse modo, Lampião não só sabia ler e escrever como foi adquirindo ao longo de sua caminhada um grande cabedal de conhecimentos. Além de ser mestre em tudo que dissesse respeito a sertão, seus labirintos, perigos, armadilhas, também era perito no conhecimento comportamental das pessoas. Conhecia o inimigo só no ouvir dizer; se lançava o olhar sobre um já sentia se o cabra prestava ou era falso; bastava ouvir alguém dizer alguma coisa para ter certeza do quanto de verdade havia ali.
Mas não ficava apenas nesse conhecimento próprio perante o outro, pois apreciava e muito ouvir as pessoas que confiava e gostava. Muitos se tornaram seus verdadeiros amigos e confidentes, aos quais o Capitão fazia confidências sem parcimônia. E um dos que mais gostava de prosear era o fotógrafo sírio-libanês, radicado nas terras agrestinas, Benjamim Abraão, que passou algum tempo acompanhando as andanças do bando e registrando tudo em fotografia.
Após conhecer Lampião em 1926, no Juazeiro do Norte, pelas bandas do Ceará, na casa paroquial onde estava reservado o famoso encontro entre o rei dos cangaceiros e o poderosíssimo Padre Cícero – homem da igreja, da política e do mosquetão -, Benjamim Abraão, então servindo como secretário do religioso, logo se mostrou interessado em imortalizar iconograficamente os passos do bando mais famoso de cangaceiros.
Nesse encontro com o Padre Cícero - ocasião em que Lampião recebeu a patente de Capitão num acordo firmado para combater a Coluna Prestes, e que não vingou porque os outros líderes nordestinos se negaram a apoiar o negociado entre o deputado Floro Bartolomeu e o presidente Artur Bernardes -, ao ser fotografado por Benjamim, e vaidoso como era, Lampião chamou-o num canto e perguntou-lhe se não estava disposto a tirar uns retratos de sua cangaceirada, principalmente dele e Maria Bonita.
Diante da pergunta do Capitão, o fotógrafo, num misto de medo e exultação, conseguiu forças para responder que por enquanto não podia abandonar os serviços que prestava ao religioso, mas assim que fosse possível nem pensaria duas vezes. E assim fez quando do falecimento do coronel milagreiro.
Mas ao chegar e ser cordialmente recebido por Lampião, Benjamim Abraão não ficou apenas incumbido de fazer os registros fotográficos, pois pesquisadores asseveram que o mesmo também servia, muitas vezes, como redator daquilo que lhe era mandado também registrar na escrita. Tudo no papel para não ser esquecido. Assim gostava de fazer o Capitão quando o assunto lhe interessava.
E numa bela tarde de sol sertanejo, enquanto o Capitão passava lenço na testa para afastar o suor encardido, olhou em direção ao fotógrafo que organizava seus equipamentos, mandou que pegasse um caderninho e o acompanhasse até uma pedra mais afastada, lajedo grande de onde se avistava uma paisagem seca e crepitante. E foi a partir desse momento que Lampião começou a registrar no papel aquilo que mais tarde passaria a ser conhecido como o Código de Conduta dos Cangaceiros de Lampião.
“Ninguém do bando deve se espelhar num mal para o mal cometer; ninguém se servirá de uma injustiça cometida para trilhar no caminho injusto. Para se cometer um mal ou uma injustiça, o cangaceiro não seguirá outro exemplo senão aquele que o momento de luta permitir”.
“Qualquer arma que se carregue por cima do corpo não deverá ser usada para amedrontar ou para atirar em qualquer um. O assovio da morte ou da defesa só deve ser dado no momento preciso que o inimigo deseje assoviar o mesmo assovio”.
“Ninguém do sertão é inimigo de cangaceiro; nenhum sertanejo trai a confiança do bando; de lado a outro, o sertão é da mesma família dos que vivem em bando. Por isso mesmo todos devem ser respeitados, defendidos, sempre vistos como família de sangue que corre nas veias”.
“Nem todo som da mata é de bicho, nem todo bicho faz barulho para ser ouvido. No meio da mata não se deve confiar em som algum, muito menos imaginar que um cancão está piando. Qualquer barulho ouvido é bom se preparar para matar passarinho”.
“Que o sono seja pesado para o corpo ficar descansado, mas não tão carregado que não posso ouvir barulho estranho. E ao despertar ligeiro, nem pensar em primeiro olhar para agir, mas buscar proteção já de arma na mão”.
“Quando receber ordem do Capitão, somente ao Capitão deverá obedecer. Quem desconfia no que ouve e procura outra ordem para seguir é porque não é obediente ao comando e precisa dizer a quem deve respeitar”.
“Quem optou seguir pela vida cangaceira deve ter o mato como casa e os companheiros como irmãos. Seus pais são a própria vida, e o seu futuro o destemor. E tudo o que ficou para trás só deve ser olhado de frente, e quando fizer a volta para reencontrar”.
“Com tanto inimigo no encalço, com tanta gente que verdadeiramente deve ser perseguido, jamais um cangaceiro que se honra deverá apontar sua arma ou desferir seu rancor contra um inocente, um desvalido, uma criança ou um idoso. Não se diz que um homem é valente pela maldade que faz, mas pelo mal que evita praticar”.
E por aí vão outras inúmeras lições, regras de conduta e de comportamento cangaceiro. Uns dizem que nada do tal código jamais foi praticado, enquanto outros juram de pé junto que se não fosse o coração justo e bondoso de Lampião o cangaço teria sido uma guerra de um bando contra todo o sertão, indistintamente.


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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