SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 21 de junho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (57)

                                         
                                             Rangel Alves da Costa*


Da cadeira ao lado da janela não dava pra ver o velho carro de boi na sua totalidade. Apenas uma parte de cima da carcaça já um tanto apodrecida. Madeira boa, da melhor que podia existir por ali, mas que não suportava a batida implacável do tempo.
Ali abandonado, debaixo do sol e da chuva, ia sendo visivelmente consumido pelo devastador calendário. Não existia mais boi para carrear, não existia mais saco de milho e feijão para levar, não havia mais carreiro a tanger o bicho, não havia mais roda rangendo e cortando caminho. Não havia seu pai, não havia mais nada...
Verdadeiro transporte agrestino, carro seguro e útil para o homem trabalhador, a madeira com rodas e puxada por bois fazia parte da história do lugar. Milho, feijão, abóbora, melancia, capim, palma, vasilhame de leite, qualquer coisa que fizesse parte da economia da região por cima da madeira era carregada em direção à cidade.
Boi Faísca, boi Fubá, boi Melado, boi Rajado e o velho carreiro de vara na mão, por cima ou à frente do carro, com ponta afiada, gritando os nomes dos bichos para seguirem logo adiante. Coisa de tempo, história de vida por ali. Som inconfundível da malemolência, do ranger, da roda sofrendo para abrir caminho na estrada. Seu pai gostava dessa vida, seu velho era um verdadeiro boi de carro no seu carro de boi.
Um dia morreu um boi e ficou faltando a parelha. Diferentemente de carroça, que pode ser usada com apenas um bicho, o normal no carro agrestino é que se usem dois bois. Na falta de um, o carro empaca, fica parado, guardado, esperando outro chegar. E se o outro não vem a madeira vai ficando esquecida, as rodas perdem a mobilidade, desacostuma de rodar. E então vai chegando o tempo e suas marcas, impondo apenas a saudosa e dolorida visão de um velho carro parado, esquecido, abandonado debaixo de qualquer pé de pau.
Era essa a situação daquele velho carro deixado de vez ali na malhada da casa, debaixo de árvore caipira e centenária. Fazendo sombreado quando o sol se aviva lá em cima, servindo como refúgio para bichos domésticos. Mas uma vez uma onça dormiu ali, seu pai dizia e era verdade. Passou as três noites seguintes de espingarda à mão, na espreita, esperando a perigosa voltar. Tempo perdido.
Certa feita, logo que surgiu a conversa da fuga do menino pra não ir embora dali com os pais, e certamente o pequeno caçador fazia de moradia a mata desnuda ao redor, Crisosta percebeu que debaixo do carro de boi bem que podia ter servido de cama para o fujão. A marca funda na terra estava lá, uma baleadeira esquecida também. E só podia ser dele, como já o tinha visto carregando aquele tipo de arma artesanal de arremessar pedra em cocuruto de passarinho.
Nunca teve oportunidade de perguntá-lo se havia mesmo dormido ali. Também nunca mais pôde conversar sossegadamente com o danadinho. Ele foi se escondendo, fugindo, até acontecer aquela coisa terrível. Até um bicho do mato atacá-lo enquanto repousava num refúgio de vara e folha.
Mas se ela levantasse daquela cadeira e fosse dar uma volta ao redor da malhada, pela frente de sua casa, e se tivesse o cuidado de olhar debaixo do carro de boi, veria algo de espantar. Talvez uma admiração, mas não deixando de chegar carregada de assombro. Mas somente se pudesse facilmente reconhecer o que os seus olhos encontrariam.
A mesma terra por cima da cova do menino, o mesmo montinho de areia verdejante e tendo flores por cima, agora estava ali debaixo do velho carro, como se aquela parte externa, por cima da sepultura, tivesse sido transportada para aquele local. Certamente os restos mortais não estariam debaixo da terra, mas o espírito talvez, rondando e achando bom estar por ali pertinho de sua amiga.
Mas numa tarde o cachorro apareceu novamente. Latiu chamando a mocinha até o carro. Quando ela abaixou para ver melhor o que havia por ali que tanto chamava a atenção viu uma flor vistosa por cima do montinha de terra. E aquela mesma baleadeira bem ao lado.
Não quis acreditar no que via, e continuou não acreditando que aquilo estivesse acontecendo. Mas por via da dúvida, se ajoelhou, fez uma prece. E naquela noite uma chama de vela iluminava a escuridão debaixo do carro de boi.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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