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sábado, 12 de maio de 2012

QUASE VADIO, UM TANTO ERRANTE (UM HOMEM FELIZ) (Crônica)


                                                      Rangel Alves da Costa*


Não era vagabundo nem ocioso, não era desocupado nem canalha, não era reles indivíduo nem abominável ser, apenas um quase vadio, apenas um tanto errante. Andarilho talvez, nômade quase sempre, uma pessoa com uma estrada a seus pés.
Calça de jeans surrada, antiga, amiga de todas as horas e vastas estradas, de um azul esbranquiçado ou de um branco azulado, de cor indefinida, mas sempre cheia das poeiras fronteiriças da vida. Tinha outra, tinha mais outra, talvez umas três na mochila. Contudo, cada uma que vestia era sempre a mesma.
Camisa de malha folgada, sem jamais ter visto ferro de passar, desengonçada, torta e amiga do vento e muito mais da ventania. Folgada, fazia festa no corpo magro, esguio, tendo por cima da cabeça uma cabeleira vistosa, bonita, de tom alourado, porém maltratada. Era bonito e era feio, pois ninguém nunca sabia ao certo se podia olhá-lo com graciosidade.
A mochila, a avelhantada mochila e seu destino. Não era mais velha do que ele mas parecia. Toda apertada, lanhada, costurada com linha grossa, com bolsos se abrindo e outros que guardavam verdadeiros segredos. Se alguém precisa de uma casa para viver, para se recolher e buscar proteção, ele dependia apenas daquela mochila para o seu bem viver. E que vida!
Menino nascido rico, hoje mais rico ainda, segundo dizia a si mesmo nas muitas horas que conversava sozinho caminhando sem destino, sentado no banco da praça namorando o outono, embaixo de um sombreado qualquer de árvore do paraíso. Estando só estava feliz, ladeado pelas companhias que mais gostava: ele e ele mesmo. E também os passarinhos, a brisa do entardecer, aquele silêncio melodioso.
Sim, era menino nascido rico e agora mais rico ainda. Sem ser discípulo franciscano nem tendo abandonado a família para tomar um rumo distante e diferente na vida, fazendo votos de pobreza e de castidade, apenas decidiu ser o que seu coração pedia e não aquilo que exigiam que fosse. E o seu coração pedia liberdade, pedia distanciamento das coisas e das pessoas materialistas, pedia uma vida sem chaves na porta nem compromisso assumido.
Muitos o tinham por louco, completamente sem juízo, um doido varrido por preferir viver vagando sem destino a conviver com o luxo das mansões e o brilho dos salões em permanente festa. Um louco, um doido, um desajuizado, nem parecia filho de família portentosa e influente, era o que alardeavam sem respeitar a sina libertária do jovem.
Os pais ofereceriam apenas o que ele dizia que não precisava ter. Nada significando luxo e requinte aceitava. E tudo rejeitado com a observação de que fosse destinado a quem tivesse fome capitalista e sede de simplesmente ter. A ele bastavam os livros, bastavam os diários da mochila, bastavam os dias e as horas. A ele bastavam o sonho e as asas que possuía a qualquer instante.
Comia no prato de Marx, de Hannah Arendt, de Proudhon, de Bakunin; bebia na fonte de Exupéry, de Jorge Luis Borges, de Voltaire, de Soljenitsin, de Neruda, de Hemingway, de Clarice e Florbela. Fatiava gulosamente Nietzsche e Schopenhauer. Saboreava avidamente de Sócrates, Platão e Aristóteles, mas se deliciava mesmo com os céticos, os epicuristas, os pessimistas. Gostava de Marco Aurélio, o sábio soberano. Por sobremesa os seus próprios escritos, as tantas poesias que escrevia para um amor chamado liberdade.
A última vez que foi visto estava de calça jeans surrada, cabelos alourados ao vento, camisa de malha já consumida demais pelo tempo, sua chinela de dedo e sua inseparável mochila. Levava à mão uma Bíblia, ainda que todo mundo insistisse em dizer que ali morava um ateu convicto. O livro sagrado marcado por folha seca sinalizava que havia lido.
E havia realmente lido: “Mas aquele que procura meditar com atenção a lei perfeita da liberdade e nela persevera - não como ouvinte que facilmente se esquece, mas como cumpridor fiel do preceito -, este será feliz no seu proceder” (São Tiago 1,25).
E seguiu adiante, sempre adiante, em busca da maior montanha que houvesse. Ali seria plenamente vadio na natureza e demasiadamente errante no cultivo da liberdade. E feliz, um ser verdadeiramente feliz.


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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