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segunda-feira, 12 de março de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A VINGANÇA DOS ENCANTADOS (final)

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A VINGANÇA DOS ENCANTADOS (final)

                                          Rangel Alves da Costa*


Assim que o caçador foi embora, o encantado marcou uma reunião urgentíssima com os outros seres mágicos da mata para deliberar sobre assunto de suma importância. Contudo, na pauta nada mais constava do que decidir se começavam a vingança já na primeira vez que o mentiroso, loroteiro e conversador do Zé Espoleta chegasse ali com sua sonsice, ou deixavam pra depois.
Com todos reunidos no meio da noite, debaixo da lua cheia, parecia mais uma assembleia para decidir sobre o futuro dos bichos e plantas que moravam no lugar. Por isso mesmo que nenhum bicho apareceu por ali, certamente com medo. Nem veado, nem raposa, nem preá, nem perdiz, nada. As plantas, amedrontadas, ficaram num silêncio tão grande que nem se mexiam, as galhagens não farfalhavam, parecia tudo estatizado.
Dentre os encantados, para não citar a imensa lista, estavam o curupira, a caipora, a mula-sem-cabeça, o saci-pererê, a cuca, a cobra-grande, a mãe-d’água, a mãe-da-lua, a iara, o fogo-corredor, sem falar nas fadas, elfos, duendes e gnomos. Apareceu, vindo de ninguém sabe onde, até um pégaso.
Assim que a caipora abriu a reunião, expondo detalhadamente as ações inaceitáveis que o caçador Zé Espoleta vinha praticando para desonrar a força dos protetores da natureza, logo os apartes começaram a surgir para dizer o que tinham de imediatamente fazer.
A cobra-grande propôs ir engolir o safado do Espoleta naquele mesmo instante, seja lá onde ele estivesse. O saci-pererê afirmou que poderia dar uma gargalhada tão alta no ouvido dele que nunca mais o mentiroso ouviria outra coisa senão o seu eco espantoso. A mula-sem-cabeça achou por bem transformá-lo num animal de caça para que ele sentisse na pele o quanto era sofrer na mira dos caçadores.
E assim foram surgindo ideias brilhantes, outras completamente estapafúrdias, porém todas no sentido de dar imediatamente a devida correção no caçador, e com algo que nunca mais ele esquecesse. Como presidente da reunião e encantado que estava mais familiarizado com as proezas injuriosas e abomináveis do caçador, então coube ao caipora dar o veredicto final sobre a pena que seria infligida contra o desastrado caçador.
No dia seguinte, logo cedinho, um caçador apontou na vereda e começou a se encaminhar para dentro da mata. Trazia espingarda, cantil, alforje e um embrulho na mão contendo a oferenda para os encantados. E não era outro senão o danoso do Zé Espoleta. Disfarçados nas folhagens, invisíveis, os encantados próprios daquela mataria esperaram apenas o momento certo para a vingança acertada.
Após colocar o embrulho na pedra, Zé Espoleta gritou, num tom de deboche: “O presente tá aí, e hoje trouxe uma surpresa, coisa tão boa de se fartar na mesa”. E a caipora respondeu: “Mas não precisava não, seu caçador falastrão. Quem mentiu pra natureza não continuará a mentir não. Hoje tudo se inverteu e quem dá o presente sou eu. E não adianta correr até o corpo amolecer. Lá vai uma e lá vai duas, e cada um venha com as suas...”.
E aí os invisíveis, avançaram sobre o caçador com gosto, com ódio feroz, com a maior raiva do mundo. E Zé Espoleta pulava, gritava, rebolava, chorava, esperneava, lacrimejava, se coçava, rolava pelo chão, levantava, se alvoroçava e parecia que ia morrer naquele momento.
E levou uma surra tão grande de urtiga com cansanção, um afogueado tão grande pelo corpo de uma labareda que não enxergava, um barulho tão grande no seu pé do ouvido, um pinicar tão grande pelo corpo inteiro, que ficou totalmente irreconhecível. De repente sentiu que já conseguia correr e saiu feito um doido pela estrada, gritando, implorando por tudo na vida que lhe salvassem.
E da carreira que deu esqueceu o caminho de casa e foi parar bem na praça do lugar, onde outros caçadores estavam reunidos debaixo dum pé de pau. Ao avistarem Espoleta chegando ali daquele jeito logo perguntaram o que tinha acontecido.
E antes de cair desmaiado, ouviu-se apenas ele dizer: “Num caço mais nunca. Fui caçado. Num caço mais nunca...”.
E enquanto isso a mata e os seus habitantes festejam a lição dada. Só não se sabe se os outros caçadores também sentiram a lição dos protetores da natureza.   




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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